ARTIGO | Representações sociais do cigarro na cultura popular brasileira 1 Introdução O combate ao tabaco e suas graves consequências é preocupação de governos de todo o mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o tabagismo é responsável pela morte de cerca de seis milhões de pessoas por ano no mundo, sendo a causa de 10% dos óbitos entre os adultos (Organização Mundial da Saúde, [OMS], 2014). Nas ultimas duas décadas, a política de combate ao tabagismo no Brasil tem alcançado resultados positivos, reduzindo de 35% para 11,3% o numero de fumantes na população (Ministério da Saúde, 2015). Entretanto, tendo em vista o conjunto de doenças associadas ao consumo, esse ainda constitui um grave problema de saúde pública, já que mais de 20 milhões de brasileiros ainda estão expostos diretamente aos seus malefícios. Autores como Czeresnia (2008) e Martínez-Hernáez (2009) chamam a atenção para a importância de se ampliar o enfoque usualmente associado aos modelos biológicos ou biologistas para incluir a dimensão da cultura no entendimento dos processos de saúde. Nesse contexto, a produção de campanhas antitabagistas e ações de estímulo ao abandono do tabaco podem ser enriquecidas por pesquisas com abordagens diversas, para a construção de uma perspectiva multidimensional, que inclua não apenas as dimensões orgânicas e psíquicas, mas também os aspectos sociais, políticos, econômicos e simbólicos relacionados a esse consumo. O presente trabalho contribui para essa diversidade, tendo como objetivo de pesquisa investigar a representação do cigarro no imaginário coletivo brasileiro, enfatizando sua dimensão simbólica e principais significados associados ao seu consumo. Compreender as propriedades simbólicas dos produtos no ambiente social é fundamental para se entender seu valor de troca no mercado e os fatores que motivam o consumo (Slater, 2002). Assim o trabalho pretende responder a seguinte questão de pesquisa: quais são os significados do cigarro presentes na cultura brasileira? 2 Revisão de Literatura Segundo Foucault (1987), o imaginário é o conjunto cumulativo das produções culturais que circulam na sociedade sob formas variadas: iconografia, literatura, canções, provérbios e mitos. Do ponto de vista das Ciências Sociais, as representações sociais podem ser entendidas como categorias de pensamento que dão forma à realidade, perpassando o tecido social como algo anterior e habitual (Minayo, 1994). Jodelet (1989a,1989b) afirma que as representações sociais devem ser estudadas a partir da articulação de elementos afetivos, mentais, sociais, integrando elementos cognitivos, de linguagem e a comunicação, pois estas se manifestam por palavras, sentimentos, atitudes e condutas, conscientes ou inconscientes. Como fenômenos sociais, as representações devem ser entendidas a partir do seu contexto de produção, das funções simbólicas e ideológicas a que servem e das formas de comunicação por que circulam. Ou ainda, nas palavras de Maffesoli (2001, p. 80), “o imaginário de um indivíduo é muito pouco individual, mas sobretudo grupal, comunitário, tribal, partilhado”. Assim, o imaginário torna-se veículo fundamental para a produção de sentido, permitindo o reconhecimento de nós mesmos a partir do reconhecimento do ambiente social (Maffesoli, 1995). Este repertório coerente e integrado de imagens, subjacente às ações humanas, revela crenças e valores e constrói um senso de pertencimento homogêneo. Estudos do imaginário permitem decodificar a interação entre indivíduos e produtos culturais simbólicos (Durand, 1989). AUTORES | Maribel Suarez | Luciana Araujo Além de veículos da ideologia de consumo, os meios de comunicação são importantes como agentes de construção dos imaginários e de socialização dos indivíduos, retratando práticas e significados vigentes, bem como sinalizando comportamentos que seriam considerados adequados em relação aos bens de consumo, restrições ou possibilidades de uso futuro (Hirschman, Scott, & Wells, 1998). Como exemplificam Hirschman e Stern (1994, p. 580), o consumo de textos culturais, como músicas, filmes, livros, dentre outras categorias de materiais culturais, tem um poderoso efeito sobre a imagem que mulheres e homens têm de si mesmos, seus papéis, seu lugar: “da mesma maneira que nós consumimos textos midiáticos, somos também consumidos por eles, que moldam nossos pontos de vista, quem e o que somos”. Com o cigarro, não é diferente, conforme destacam as pesquisas de Krugman, Morrison e Sung (2006) e Sargent (2005). Segundo esses autores, a exposição a cenas de fumo em filmes ou revistas influencia a adoção do tabaco, especialmente quando se trata do público infantil e adolescente. A dimensão simbólica do consumo e o movimento dos significados A incorporação das discussões realizadas inicialmente no âmbito da Antropologia contribuiu para as reflexões de Marketing ao evidenciar o consumo como um fato social total e um grande sistema classificatório ou, ainda, um modo privilegiado de comunicação entre os indivíduos, aproximando ou afastando pessoas e grupos, criando, assim, distinções, hierarquizando e criando “barreiras ou pontes” (Douglas&Isherwood, 2004). Foi a partir da atenção a estudos como os de Veblen (1965) e Mauss (1974) e do questionamento gerado por contemporâneos como Douglas e Isherwood, (2004), Bourdieu (2008), McCracken (1986, 2003), Campbell (2001), Slater (2002), Miller (2002), dentre outros, que as investigações do campo puderam incorporar visões menos economicistas e utilitaristas desse fenômeno. McCracken (1986, 2003) traz uma contribuição fundamental à essa abordagem simbólica ao propor um arcabouço elucidativo da dinâmica de transferência dos significados presentes na cultura para os bens de consumo e destes para os consumidores individuais. Sua principal contribuição aos estudos de consumo, segundo o próprio autor, está em reconhecer que os significados carregados pelos bens têm uma qualidade móvel, ou seja, estão permanentemente fluindo das e em direção às localizações no mundo social. Seu trabalho esquematiza três locais para o significado: o mundo culturalmente constituído, o bem de consumo e o consumidor individual. O mundo culturalmente constituído se manifesta na experiência cotidiana, pela qual os fenômenos se apresentam aos indivíduos. A experiência é moldada e constituída pelas crenças e pressupostos da cultura. Ela é, ao mesmo tempo, lente e plano de ação, determinando como o mundo é visto e como deve ser moldado pelo esforço humano. Categorias, que são as coordenadas fundamentais de significado, e os princípios culturais, os critérios que operacionalizam a distinção em categorias, são substanciados pelos bens de consumo que, carregados de significados, ajudam a forjar a cultura, tornando-a concreta e visível. Segundo McCracken (2003), a publicidade e o sistema de moda são instrumentos para a transferência de significado do mundo cultural, e historicamente constituído, para os bens de consumo. A publicidade procura, dentro dos moldes de um anúncio, fundir uma representação do mundo culturalmente constituído a um bem de consumo. Nessa tarefa, o profissional responsável pela criação de uma peça publicitária trabalha articulando dois planos. O primeiro compreende as pesquisas de mercado, a estratégia da empresa para o produto, a “imagem da marca” a ser estabelecida ou reforçada. O segundo, a cultura - as categorias e princípios -, onde esse publicitário vai buscar elementos que permitam situar o significado do produto em questão. Nesse contexto altamente planejado, decide-se, então, ARTIGO | Representações sociais do cigarro na cultura popular brasileira como o produto será apresentado: que textos e convenções visuais serão explorados de modo a dar ao leitor/espectador a oportunidade de vislumbrar uma equivalência essencial entre o mundo cultural e historicamente constituído e o produto. Estimulado por muitas exposições e estímulos, o receptor da mensagem publicitária tem o papel ativo de perceber ou não a similaridade proposta pelo anúncio, realizando efetivamente a transferência das propriedades significativas do mundo culturalmente constituído para o bem de consumo em questão. O sistema de moda realiza a mesma dinâmica, envolvendo, no entanto, um sistema mais complexo, com mais fontes de significado, agentes de transferência e meios de comunicação. Segundo McCracken (2003) as fontes de significado no sistema de moda são menos controláveis, mais dinâmicas e numerosas do que na publicidade: incluem designers, arquitetos, observadores sociais (acadêmicos, jornalistas, pesquisadores de marketing), profissionais da imprensa, da TV e do cinema. Assim como a publicidade, o sistema de moda opera transportando significados do mundo culturalmente constituído para os bens. McCracken (2003), no entanto, também chama a atenção para outras duas capacidades do sistema de moda: 1) a de inventar, ainda que de modo modesto, novos significados culturais, ajudando a moldar e a refinar o significado cultural existente, e encorajando a reforma de categorias e princípios culturais; 2) a de promover a reforma radical dos significados culturais, como um canal de captura e difusão das mudanças, dos desvios das convenções, das normas culturais. A primeira tarefa normalmente é realizada pelos líderes de opinião, indivíduos que são admirados e imitados pelos demais. Vistos como uma elite social, suas pequenas inovações de significado são perpetuadas, sendo reproduzidas pela maioria. À frente das reformas radicais de significados, entretanto, normalmente estão aqueles à margem da sociedade, grupos como hippies, punks e gays, capazes de gerar novos significados por meio da resistência ou violação das categorias e princípios culturais existentes. Segundo McCracken (2003) o significado assentado nos bens de consumo é finalmente transferido para o consumidor através de ações simbólicas ou “ritual”. Seguindo a abordagem de autores como Nancy Munn e Victor Turner, McCracken define ritual como “um tipo de ação social dedicada à manipulação do significado cultural, para propósitos de comunicação e categorização coletiva e individual” (McCracken, 2003, p. 115). Segundo o autor, rituais afirmam, evocam, assinalam ou revisam os símbolos e significados constituintes da ordem cultural, servindo como ferramentas para a manipulação dos mesmos. O presente trabalho tem por objetivo entender a dimensão cultural e, portanto, simbólica do cigarro. Para isso, o estudo situa os significados relacionados à categoria do cigarro a partir de dois pontos de vista. O primeiro refere-se à análise de letras da Música Popular Brasileira (MBP), como sugere McCracken (1986, 2003), um importante instrumento do sistema da moda, atuando na transferência de significados do mundo culturalmente constituído para os produtos. Como forma de captar o imaginário associado ao produto na perspectiva dos indivíduos, a presente pesquisa se baseia em entrevistas em profundidade com quinze ex-fumantes.O item a seguir procura apresentar as escolhas e caminhos metodológicos do trabalho. 3 Método Para conhecer as representações sociais associadas ao cigarro, foram analisadas letras do repertório moderno de músicas brasileiras. No Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, um texto de Mario de Andrade (2002) situa a relevância desse recurso para a compreensão do país: AUTORES | Maribel Suarez | Luciana Araujo A importância da Música Popular Brasileira no cenário de nossa cultura é inegável. Pode-se constatar que a MPB, além de sua relevância como manifestação estética tradutora de nossas múltiplas identidades culturais, apresenta-se como uma das mais poderosas formas de preservação da memória coletiva e como um espaço social privilegiado para as leituras e interpretações do Brasil. No Brasil, a música popular constitui um texto cultural produzido e consumido por todas as classes sociais. Seu conteúdo vai além da estética eevidencia o conjunto de representações simbólicas que abastecem determinado imaginário social, sendo capaz de articular modos de pertencimento (Borelli & Freire, 2008; Lima, 2007). Como coloca Martín Barbero (2008, p. 16), a música é uma interface que permite ao indivíduo “se conectar e conectar, entre si, referentes culturais e domínios de práticas e saberes”. Ou ainda, nas palavras de Schlögl e Loureiro (2012, p. 533): O compositor tem a capacidade de ler o invisível, como se escutasse a linguagem coletiva que vaga em nosso inconsciente, comprovando a veracidade de suas intuições por meio da recepção do povo, daqueles milhares que cantam a poesia de suas músicas. Mergulhar nesse mundo do imaginário da Música Popular Brasileira (MPB) é conhecer os medos, as aspirações, enfim, é trazer à tona os desejos mais íntimos e mais velados do nosso povo. Na coleta de dados da presente pesquisa, foram realizadas buscas no site "letras.terra.com.br", sendo selecionadas apenas canções compostas por brasileiros, excluindo-se as músicas estrangeiras e as traduções. O levantamento das letras não pretendeu ser exaustivo, cobrindo todo o repertório de músicas que compõe a vasta obrada MPB, mas seguiu o princípio da saturação teórica (Fontanella et al., 2011), em que a busca por novas músicas foi encerrada a partir da recorrência de temas já mapeados. No total, foi realizada a leitura interpretativa de 45 músicas nas quais a palavra “cigarro” se fazia presente. A pesquisa utilizou-se ainda de entrevistas em profundidade com 15 ex-fumantes que haviam abandonado o consumo nos últimos cinco anos, com o objetivo de captar as percepções de um grupo que já teve alto envolvimento com a categoria. A entrevista qualitativa em profundidade é um método amplamente empregado, sendo considerado um dos mais importantes dentro do arsenal qualitativo (McCracken, 1988). Seu objetivo não é obter respostas simples, testar hipóteses ou avaliar um conteúdo previamente conhecido, mas entender a experiência “viva” do informante e os significados que este deriva dela (Rubin & Rubin, 2005). Assim, em uma conversa direta e pessoal (que para o leigo pode se aproximar de uma interação cotidiana) busca-se captar o universo mental do entrevistado (McCracken, 1988), com o objetivo de entender o seu comportamento. A escolha de ex-fumantes se justifica pelo fato de que esses tem acesso a um repertório amplo de significados simbólicos associados ao cigarro (positivos e negativos), uma vez que habitou esse consumo por um longo período, mas fez o movimento de substituí-lo por outro distinto. Ao descreverem o que buscavam ou sentiam em relação ao cigarro e como foi o processo de parar de fumar, os entrevistados construíram narrativas simbólicas, de outra forma ocultas pelo pragmatismo instituído pela racionalidade do pensamento, revelando um repertório de significados que ajudou a dar profundidade aos insights gerados pelas letras da MPB. Os entrevistados tinham entre 29 e 63 anos de idade, faixa da população adulta que concentra o maior número de fumantes (Ministério da Saúde, 2015). Todos os entrevistados se enquadravam dentro do contexto das camadas médias urbanas e de bom nível ARTIGO | Representações sociais do cigarro na cultura popular brasileira educacional (segundo grau ou nível superior). Para garantir a privacidade dos entrevistados, foram utilizados pseudônimos. Todas as entrevistas foram gravadas, totalizando aproximadamente dezesseis horas de áudio, posteriormente transcritas. A análise foi realizada com o auxílio do programa Atlas ti (versão 6) e seguiu a dinâmica proposta por Rubin e Rubin (2005). A partir das entrevistas buscou-se encontrar, refinar e elaborar conceitos, temas e eventos, que pudessem ser codificados e inter-relacionados para a construção dos resultados que serão apresentados a seguir. 4 Resultados As restrições à publicidade de cigarro acontecem desde a década de 90 no nosso país, quando também passaram a ser veiculadas as primeiras advertências nos maços. Desde 2001, foram incluídas imagens de contra anúncio, que ocupam uma das duas faces maiores da embalagem do produto, além dos textos de alerta e telefones para os que desejam auxílio para parar de fumar (Zanotti & Goveia, 2009).Na fala de muitos entrevistados da pesquisa, o cigarro é apresentado como um produto cujo significado se alterou fortemente ao longo das últimas décadas. O discurso recorrente é que a iniciação no consumo foi em outra época, quando não se tinha tanta consciência dos danos causados pelo produto e seu consumo era cercado de glamour: No primeiro momento era cool fumar, era bacana, todo mundo fazia. A propaganda divulgava aquilo como uma coisa descolada. Na época que parei de fumar estava justamente o contrário, era uma campanha forte que fumar não era legal, não era cool. Não era descolado, era ruim, desagradável e fazia mal a saúde. (Renata, 42 anos, assessora de imprensa) Na minha infância, todo mundo fumava. Era um charme, inclusive minhamãefumava o cigarro Charm que era fininho e longo. Todo mundo fumava na minha família. Então, eu era fascinada, eu roubava cigarro quando era pequena, muito pequena. Eu tenho memória minha no espelho do banheiro e fumando, fazendo pose, acendia o cigarro de fato e fumava. (Carlota, 44 anos, jornalista) A bem sucedida política antitabagista das últimas duas décadas trouxe informações a respeito dos malefícios do produto, ajudando a reforçar significados negativos associados à categoria. Na fala dos entrevistados, foi possível perceber a aderência aos significados dessa campanha, presente sobretudo nas racionalizações que justificam o movimento de abandono do produto. A análise das músicas em que o cigarro se faz presente, entretanto, sugere um repertório menos óbvio e socialmente corrente, capaz de gerar associações que podem ser positivas, como transgressão, companhia e consolo. A análise das músicas permite uma releitura mais aprofundada das entrevistas e de que maneira os significados relacionados ao consumo se transformaram ao longo do tempo. 4.1 O cigarro como signo de rebeldia e transgressão Alguns entrevistados relataram que, mesmo antes das campanhas antitabagistas, podiam perceber certa restrição e crítica em relação ao cigarro, especialmente no âmbito da família. Mesmo aqueles que tinham pais ou mães fumantes recordam do controle e das preocupações que o produto suscitava. Assim, a áurea sedutora do cigarro parecia suscitar normas morais da sociedade que se relacionavam não apenas como os aspectos de saúde, AUTORES | Maribel Suarez | Luciana Araujo mas também com os aspectos de gênero, evidenciando que existiam diferenças no consumo dos homens e mulheres em relação ao produto: Tinha medo de fumar dentro de casa, embora o meu pai fumasse e minha mãe fumasse em intervalos. Era interessante, porque eu não gostava que a minha mãe fumasse. Eu achava ruim, e não era por algum motivo do tipo “a mulher não pode fumar”. Não era por isso, porque eu lembro de uma professora falar que quem fumava, morria. Então, era interessante: eu achava que aquilo não ia atingir o meu pai, mas eu achava que atingiria a minha mãe. (Suzana, 40 anos, jornalista) Para alguns entrevistados, a iniciação no consumo foi cercada de segredos, sendo praticado escondido, com os amigos, longe dos olhos da família. Para estes, o consumo do cigarro representava uma forma de socialização, transgressão e iniciação à vida adulta. Uma empregada descobriu [que a entrevistada fumava] e dedurou para minha mãe, que começou a esconder o cigarro de mim. Mas, eu não tragava, ficava na frente do espelho fazendo pose, porque achava chique. Daí, depois fui começar a fumar muito cedo, na adolescência, na escola. Minha amiga me ensinou a tragar na escola, matando aula na escadaria, e daí a gente começou a fumar. (Carlota, 44 anos, jornalista) Para alguns dos entrevistados, o consumo era, em primeiro lugar, uma forma de manifestar certa rebeldia, como reconhece Amanda (36 anos, psicóloga): Eu me lembro do meu primeiro cigarro. Eu tinha 14 anos, meus pais estavam se separando. Era um frio do cão. Tinha umas meninas com quem eu não devia andar. Elas eram mais marrentas, e com essa história da separação dos meus pais eu fui ficando muito rebelde. Essas meninas me convidaram para ir a um bar, que se chamava Caverna de alguma coisa e ficava embaixo do estádio do Grêmio. A gente foi para esse bar e começou a beber. Um dos meus primeiros registros de bebida que eu tenho: só que bebida a gente bebia em casa. Mas as meninas compraram uma carteira de Free e a gente começou a fumar, e eu nunca mais larguei o cigarro. No relato das entrevistadas acima, é possível vislumbrar o cigarro como elemento de transgressão, especialmente feminina. Nesse movimento reside parte do glamour e da sedução que o produto também é capaz de incorporar. Todos esses significados, por exemplo, já se fazem presentes na letra de “Dama do Cabaré” (1936), de Noel Rosa. Foi num cabaré na Lapa Que eu conheci você Fumando cigarro, Entornando champanhe no seu soirée Dançamos um samba, Trocamos um tango por uma palestra Só saímos de lá meia hora Depois de descer a orquestra Em frente à porta um bom carro nos esperava Mas você se despediu e foi pra casa a pé No outro dia lá nos Arcos eu andava À procura da Dama do Cabaré Eu não sei bem se chorei no momento em que lia A carta que recebi, não me lembro de quem Você nela me dizia que quem é da boemia Usa e abusa da diplomacia Mas não gosta de ninguém Foi num cabaré na Lapa... (Dama do Cabaré, Noel Rosa, 1936) ARTIGO | Representações sociais do cigarro na cultura popular brasileira A “dama do cabaré” é a que encanta e seduz os homens, sem nunca se apaixonar. É a que tem prazer (fuma, entorna champanhe e dança ritmos sensuais) e faz escolhas (dos meios de transporte e dos homens que deseja para si). Dispensa luxo, porque sabe o que quer (“foi para casa a pé”). Associado às mulheres, o cigarro é sinônimo de sedução, transgressão e prazer. Herdeiro direto da tradição poética e bem humorada de Noel Rosa, Chico Buarque canta o apaixonado que também se “deixa enganar” por sua amada, a mulher de reputação duvidosa, que não se prende a um único homem, mas é capaz de proporcionar as verdadeiras alegrias aos que estão à sua volta. (...) A santa às vezes troca meu nome E some E some nas altas da madrugada Coitada, trabalha de plantonista Artista, é doida pela Portela Óiela Óiela, vestida de verde e rosa A Rosa garante que é sempre minha Quietinha, saiu pra comprar cigarro Que sarro, trouxe umas coisas do Norte Que sorte Que sorte, voltou toda sorridente Demente, inventa cada carícia (...) (A Rosa, Chico Buarque, 1995, grifo nosso) Chico Buarque usa nessa composição a expressão corrente do “sair pra comprar cigarro”, como uma forma bem humorada de sugerir a traição e o abandono do lar. Esse é na cultura brasileira um meio indireto de sugerir o sexo extraconjugal, o rompimento das amarras, a libertação das normas: é deixar a casa (o espaço organizado e regrado da família) em busca da desorganização e falta de limites da “rua”, impulsionado pela busca do prazer. Em muitas canções, além do sexo, cigarro é sinônimo de ambiente de festa (por exemplo, o sucesso cantado por Ivete Sangalo, Pererê, de Augusto Conceição e Chiclete) Associação entre os prazeres da vida e o cigarro também se faz presente na fala dos entrevistados da pesquisa. Suzana (40 anos, jornalista), por exemplo, conta que costuma ser alvo das críticas de uma amiga fumante, que sugere uma vida ascética para os que abandonaram o consumo: “toda vez que ela encontra a gente, ela fala: essa gente chata que não fuma, também não deve trepar!” Dentro do universo masculino, o cigarro também se associa à transgressão através da figura do malandro, um ideal associado à esperteza, à boemia e ao não enquadramento às regras morais. Não por acaso, o freguês folgado de “Conversa de Botequim” (música de Noel Rosa) inclui o produto entre as suas exigências e explica que é para “espantar mosquitos” (expressão empregada para criticar os “certinhos”, que não têm esperteza e não permitem se entregar aos vícios, com prazeres e alegrias que estes são capazes de proporcionar). Além do sexo, o cigarro está relacionado aos excessos da bebida e da noite. Flávio (63 anos, advogado) lembra que justamente por isso, o cigarro era para a sua geração uma espécie de ritual de passagem. O advogado relembra o sacrifício para se iniciar no consumo de sabor desagradável, mas explica: “a gente tinha que fumar para ser homem”, revelando uma masculinidade que se constrói suportando provações do grupo, na rua. AUTORES | Maribel Suarez | Luciana Araujo É interessante notar a partir das músicas que os significados do cigarro parecem ter nuances distintas para homens e mulheres. Para os homens, o cigarro aparece como afirmação de força e masculinidade, a partir da associação com figuras importantes na nossa cultura como o “malandro”, o “artista” ou o “engajado político”. Para as mulheres, este também está associado ao poder, entretanto, na sua vertente mais feminina, sugerindo uma capacidade de sedução e de libertação dos tabus morais. A mulher fumante é aquela pode ter uma reputação duvidosa, se aproximando da áurea marginal, mas faz suas escolhas e domina os homens. “Meu caro amigo”, de Chico Buarque, utiliza-se dessa áurea “limítrofe” do produto (aceito, mas indicativo de uma possível marginalidade) para extrapolar o domínio boêmio e sexual e constituir significados também no âmbito político: Meu caro amigo me perdoe, por favor Se eu não lhe faço uma visita Mas como agora apareceu um portador Mando notícias nessa fita (...) Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro Ninguém segura esse rojão (...) (Meu Caro Amigo, Chico Buarque, 1976) Chico define na canção seu lugar como artista no período da ditadura: cava o seu ganha-pão como forma de resistência (a “birra” e o “sarro”, dos “malandros”). A áurea marginal associada ao produto é retomada aqui para compor a imagem de alguém que critica e não compactua com o sistema. O cigarro, o sexo e a cachaça são os alívios possíveis para quem não se deixa alienar (o tema do cigarro como consolo será discutido a seguir). Em algumas canções, o cigarro aparece associado à criminalidade, às drogas ilícitas (“Cigarro Mata”, “Sabotage”; “Cigarro Muito Louco”) . No entanto, a transgressão também pode ganhar contornos juvenis, como aquela cantada por Mallu Magalhães, em “Versinho de número 5”, onde a menina relata os sentimentos ambíguos da amada que rejeita o cigarro de seu namorado, mas intimamente admira o charme que este é capaz de proporcionar àquele que resiste aos seus pedidos de largar o consumo: Quando acende esse cigarro Eu vou e tiro sarro Deixando o colo teu Traga e sopra pra outro canto Girando o rosto tanto Digo que charme teu Mas, no fundo eu admito Olhando assim de lado Eu acho tão bonito (...) A música acima parece traduzir uma tensão inerente ao cigarro: parte do seu fascínio pode residir no próprio fato de que se trata de um consumo “difícil”, “rejeitado” e até estigmatizado pela sociedade. Se, por um lado, carrega a idéia de vício e fraqueza, o produto abarca também a idéia de alguém que é capaz de afirmar sua singularidade, sua força e capacidade de resistir até mesmo a rejeição da mulher amada. Aqui é importante retomar o arcabouço da dinâmica de transferência dos significados proposto por McCracken (1986), que embasa a abordagem teórica do presente trabalho. Por um lado, o sistema da publicidade, capitaneado pelas campanhas governamentais, atua ARTIGO | Representações sociais do cigarro na cultura popular brasileira criando significados de combate o cigarro. Do outro lado, o sistema da moda, representado aqui pela música popular brasileira, oferece um contraponto positivo para esse consumo, como rebeldia e transgressão. Nesse sentido, um desafio importante para a campanha antitabagista está em atrair outros emissores, além do governo, para as mensagens de questionamento ao cigarro. Do contrário corre-se o risco de reforçar os significados positivos do cigarro, de resistência, transgressão e rebeldia, como forma de diferenciação ao sistema, ao “discurso oficial”, emitido exclusivamente pelo governo. 4.2 Sofrimento romântico e consolo No imaginário sugerido pelo cancioneiro brasileiro o cigarro também pode ser testemunha e prova do sofrimento. Ele é cantado em algumas canções como a companhia dos solitários, dos que amam, dos que sentem e esperam pela mulher amada, como, por exemplo, em “Cigarro de Palha” (Luis Gonzaga); “De cigarro em cigarro” (Luis Bonfá); “Eu que não amo você” (Humberto Gessinger); “Cigarro” e “Blues do elevador” (ambas de Zeca Baleiro). Nessas e em tantas outras, o produto é o adereço indispensável ao coração romântico, consolo dos que sofrem - depois da festa, da noite de excessos ou do amor que partiu. Essa fala repercute nas histórias de alguns entrevistados que lamentam justamente a falta de sua melhor companhia: Quem fumou de verdade, não tem dúvida de que não há, não existe pessoa que consiga ser uma companhia tão boa quanto o cigarro, exatamente porque não é uma pessoa. É demoníaco o negócio, porque é capaz de ser uma boa companhia na alegria, de te confortar na tristeza, de te acalmar na excitação. (Suzana, 40 anos, jornalista) É a companhia calada, porque a companhia que fala não é a companhia do cigarro. A companhia do cigarro é uma companhia diferente, não adianta você arrumar amigo, namorado, nada disso. É uma companhia calada e solidária. Ela só aceita, não contra-ataca e nem pergunta nada, uma companhia maneira. (Daniele, 42 anos, filósofa) Cigarro é também, em algumas canções, a medida do tempo que se espera sozinho, angustiado, como em “Esperando Para Atravessar A Rua” (Tony Bellotto, Branco Mello, Charles Gavin e Arnaldo Antunes); ou “Nem 5 Minutos Guardados” (Sergio Britto e Marcelo Fromer). Se o cigarro é a última companhia, o último prazer possível, o que possibilita aguentar o “rojão”, sua falta é a completa tradução do desespero, da posição irremediável. Essa idéia está presente em “Até o Fim”, de Chico Buarque. Quando nasci veio um anjo safado O chato do querubim E decretou que eu estava predestinado A ser errado assim Já de saída a minha estrada entortou Mas vou até o fim (...) Não tem cigarro acabou minha renda Deu praga no meu capim Minha mulher fugiu com o dono da venda O que será de mim? Eu já nem lembro "pronde" mesmo que eu vou Mas vou até o fim (...) (Até o Fim, Chico Buarque, 1978) AUTORES | Maribel Suarez | Luciana Araujo Nessa música, Chico retoma o “gauche” de Carlos Drummond de Andrade, para contar a história de alguém também à margem: o homem sem talentos, que não pode ser ladrão (malandro), militar e sequer é bom de bola. Na sociedade brasileira, só lhe resta, então, o lugar marginal, como artista. Porém, sua situação limite e de desespero é revelada pela falta do cigarro. Este não pode ser mais obtido nem através das relações de mercado (a renda), nem através das relações pessoais (da ex-mulher com o dono da venda). E nessa situação, o personagem se pergunta: “o que será de mim?”. A análise das músicas e entrevistas evidencia que não apenas os rituais - dotados de atenção e seriedade -, mas também os comportamentos mais cotidianos ou ordinários são capazes de transferir significados dos bens para os consumidores. A fala dos entrevistados evidencia como o ato habitual de fumar é capaz de reforçar os significados de companhia e consolo. Nesse sentido, podemos destacar aqui que, como sugerido por Otnes e Scott (1996), os movimentos de significados não são meros atos de transferência, da cultura para os produtos e destes para os consumidores por meio dos rituais. Concordamos com as autoras no aspecto de que os consumidores são leitores que se engajam em atividades interpretativas, recriando os complexos significados e afirmações propostos pelos publicitários e pelo sistema da moda, a partir de seus próprios quadros de referências. 4.3 Cigarro como fraqueza / vício As campanhas antitabagistas ajudaram a propagar os significados negativos do produto. A análise das músicas, entretanto, revela que a tensões em torno do cigarro não são recentes. Em “Pela décima vez”, sucesso de Noel Rosa de 1935, cigarro e mulher amada se confundem: seu personagem está tão entregue a esse amor quanto ao vício do cigarro. Os dois são “o veneno que mata sem sentir”. Como o cigarro, resgatado da sarjeta, ela também é perdoada e se mantém na vida do protagonista: Jurei não mais amar pela décima vez Jurei não perdoar o que ela me fez O costume é a força que fala mais forte do que a natureza E nos faz dar provas de fraqueza Joguei meu cigarro no chão e pisei Sem mais nenhum aquele mesmo apanhei e fumei Através da fumaça neguei minha raça chorando, a repetir: Ela é o veneno que eu escolhi pra morrer sem sentir Senti que o meu coração quis parar Quando voltei e escutei a vizinhança falar Que ela só de pirraça seguiu com um praça ficando lá no xadrez Pela décima vez ela está inocente nem sabe o que fez (Pela Décima Vez, Noel Rosa, 1935) Nessa mesma canção, o cigarroé também amparo, a última companhia que resta ao protagonista. No desespero, no momento de sofrimento, ele pode sempre ser resgatado. Assim, alguém que tem um cigarro tem pelo menos um último consolo. Entretanto, destaca se aqui a imagem do cigarro que, assim como o amor, joga o protagonista no domínio do vício, da dependência, da falta de controle e entrega total. O cigarro e a mulher humilham e revelam a fraqueza doemissor, demonstrando serem mais fortes que qualquer senso de preservação (“a própria natureza”). Na música “Cigarro Aceso No Braço”, de Frejat, Fernando Magalhães e Mauro Santa Cecília percebe-se uma ruptura com os significados mais românticos (emoções, amor perdido, dor, solidão) usualmente relacionados ao produto, sugerindo uma visão mais contemporânea do produto. Esse não é mais a companhia desejada ou o consolo no momento do desespero, mas a causa do sofrimento. A música conta a história de um amor do passado que perde seu encanto. Sua presença, quase obrigatória, se transforma na ARTIGO | Representações sociais do cigarro na cultura popular brasileira tortura de um cigarro que queima o braço. No lugar do consolo, a manutenção desse amor tão difícil de se desvencilhar é também fonte de culpas. Por mais que eu queira insistir Nosso tempo acabou Eu tenho que admitir Isso não é mais amor (...) Vendo o sonho morrer Eu pude perceber Você dormindo hoje ao meu lado É um cigarro aceso queimando o meu braço É um cigarro aceso queimando o meu braço (Cigarro Aceso No Braço, Frejat, Fernando Magalhães e Mauro Santa Cecília) Em diversas canções o cigarro ganha contornos de obsessão: compulsão e vício que se impõe em todos os momentos da vida do protagonista (“Meu vício é você”, de Chico Roque e Carlos Colla; “Cigarro”, de Zeca Baleiro; “Tem cigarro aí”, Rogério Skylab). O cigarro que acorrenta os fracos está também presente na canção “Eu tô tentando”, de George Israel e Paula Toller (Kid Abelha), que narra o esforço do protagonista para “sair do buraco e “evitar o fracasso” ou ainda “Perdendo os dentes”, de John e Fernanda Takai (Pato Fu), que mostra as brigas perdidas pelo protagonista. Outra associação fortemente negativa é a que faz do cigarro como vício que simboliza a sociedade de consumo, que impõe seus produtos e malefícios aos indivíduos (“3ª Do Plural”, de Humberto Gessinger; “É Fim De Mês”, de Raul Seixas, “Quando parei no sinal”, de Franco e Arlindo Cruz; e “Fumaça, café e cigarro”, de Marcelo Adnet). Um dos principais sucessos de Lobão e Bernardo Vilhena, “Revanche”, lamenta o processo de dependência e as escolhas erradas que o indivíduo faz no contexto mais amplo de erros e ilusões criadas perpetuadas pela sociedade contemporânea. O café, um cigarro, um trago, tudo isso não é vício São companheiros da solidão, mas isso só foi no início Hoje em dia somos todos escravos, e quem é que vai pagar por isso? Slater (2002) lembra que, no pensamento moderno, a figura do consumidor pode ter tanto a acepção heróica quanto a idiotizada. O primeiro relaciona-se ao ideal de autonomia e autodeterminação propagado pela tradição liberal, enquanto que o segundo representa justamente a perda das faculdades racionais e à incapacidade de definir suas próprias necessidades e ser soberano em relação a elas. O idiota é, segundo Slater (2002), aquele que se torna escravo dos seus desejos materialistas, cuja origem não está em si mesmo, mas é determinada pela pressão social. Trata-se daquele que facilmente deixa-se enganar, (des)orientado pela moda e pelo discurso publicitário, capaz de induzi-lo a satisfazer necessidades irracionais ou artificiais. A música acima, evidencia o consumidor de cigarro, como o escravo. Dentro do arcabouço da dinâmica de transferência dos significados (McCracken,1986), encontramos nos significados do cigarro como fraqueza e vício um ponto comum que alinha tanto o sistema da publicidade, orquestrado pelo governo, quanto o sistema da moda, representado nas músicas analisadas. Aqui temos um ponto de convergência, bem como narrativas que podem contribuir com as campanhas antitabagistas. No lugar do cigarro como “transgressão e rebeldia”, essa abordagem coloca o cigarro como o próprio sistema, a sociedade de consumo, que impõe seus produtos e malefícios aos indivíduos. AUTORES | Maribel Suarez | Luciana Araujo 5 Discussão Nos estudos a respeito do cigarro predomina uma abordagem que analisa esse consumo a partir dos seus aspectos físicos e psíquicos. O conhecimento de áreas como Antropologia e Marketing pode ajudar os profissionais e gestores da área de saúde a aprofundar também a perspectiva simbólica desse consumo. Essa visão tem como eixo central a noção de que os produtos são consumidos não apenas por seu valor funcional ou reações físicas que proporcionam, mas por seus significados e potencial de inserção e comunicação em determinado sistema social. Estudos recentes (Lopes,Galeano, & Acevedo, 2010; Toscano, Silva, & Gobbi, 2006; Wolburg, 2005) sugerem a importância de se buscar caminhos complementares para as campanhas de combate ao cigarro, atualmente centradas nos aspectos cognitivos, a partir do fornecimento de informações a respeito dos problemas causados pelo produto. Pesquisas no contexto brasileiro (Kovacs, Farias, & Oliveira, 2004; Lopes et al., 2010; Spink, 2010) evidenciam que, mesmo conscientes dos males à saúde, os entrevistados mantém a percepção de que fumar resulta em benefícios aos fumantes (aliviar a tensão, ser relaxante, emagrecer, socializar etc.). Martínez-Hernáez (2009) chama atenção para a importância de se superar os modelos comportamentalistas que se baseiam na idéia de um tipo de sujeito racional universal, que évisto como “ignorante” ou “irracional” quando contraria as normas e boas práticas de saúde. O presente trabalho contribui com os estudos antitabagistas ao enfocar esse consumo a partir de sua dimensão simbólica e não apenas cognitiva ou fisiológica. Tal perspectiva tem relevância prática nas atividades de marketing, ajudando o desenvolvimento de novas campanhas antitabagistas. O esquema teórico proposto por McCracken (1986), utilizado como lente teórica do presente trabalho, contribui para evidenciar como o sistema da publicidade e o sistema da moda estão operando diferentes dimensões de significado. Compreender de maneira abrangente o problema tabagista exige olhar para esse consumo como um sistema classificatório, capaz de aproximar ou afastar pessoas e grupos, criar distinções e hierarquizar. A presente pesquisa se utilizou do repertorio de músicas brasileiras e de entrevistas em profundidade para compreender os significados do cigarro presentes na nossa cultura. Além da associação com os temas de vício e fraqueza, as músicas sugerem também significados que podem ampliar a atratividade do produto, como transgressão, rebeldia, capacidade de resistência, companhia e consolo. Vale destacar que os significados de um consumo “marginal” e as associações com “rebeldia”, “transgressão”, “prazer”, “amor” e “emoção” já imbuídas no produto são sedutoras ao público jovem, que se coloca distanciado dos alertas oficiais. Assim, as campanhas antitabagistas podem ser enriquecidas com uma visão que vai além do fornecimento da informação “correta” e “científica”. O combate ao consumo do cigarro precisa, por exemplo, questionar a associação do produto aos estereótipos de masculinidade e feminilidade correntes na nossa cultura. Além do conteúdo, também seria possível complementar a abordagem atual diversificando os agentes que trabalham essas mensagens. O discurso antitabagista hoje é emitido predominantemente pelo governo e as entidades de saúde. A análise das músicas, entretanto, sugere que ir contra a fala “oficial”, a “autoridade”, o “pensamento corrente” é um dos apelos presentes na postura rebelde e transgressora associada ao cigarro. Nesse sentido, um dos esforços parece residir na busca por “porta-vozes” ou grupos de apoio de natureza distinta, ligados, por exemplo, ao esporte, à moda, ao empreendedorismo e com capacidade de diálogo com os mais jovens. Encontrar outros emissores para a mensagem antitabagista parece ser essencial para minimizar a ARTIGO | Representações sociais do cigarro na cultura popular brasileira associação com o comportamento ousado e questionador que historicamente o cigarro carrega. Dados recentes evidenciam o crescimento do consumo entre os jovens de classe alta no país (Ministério da Saúde, 2015). A presente pesquisa chama atenção para o conteúdo presente nos chamados textos culturais que circulam nos diversos meios de comunicação. A publicidade dos cigarrosestá proibida há cerca de duas décadas no país, entretanto, as imagens e associações ao cigarro continuam sendo produzidas e reproduzidas através de músicas, filmes, livros e outros conteúdos amplamente consumidos pela população. Inserido no contexto de histórias emocionantes e na vida de personagens sedutores, o cigarro continua perpetuando sua atratividade entre as novas gerações. Adicionalmente, é preciso alertar para os conteúdos que circulam nas redes sociais, ambiente que ainda se encontra fora do escopo das políticas antitabagistas. Que significados tem sido transmitidos por esses materiais? Como a sociedade deve se relacionar com esse conteúdo, especialmente aqueles que têm forte audiência do público jovem? Esses são aspectos que precisam ser discutidos e endereçados pelos profissionais de saúde pública e políticas antitabagistas. Pesquisas futuras sobre esse tema podem ajudar a revelar a importância de se renovar o debate em torno do cigarro. Nota de Final de Texto Esta pesquisa foi apoiada com recursos da FAPERJ. Referências Andrade, M. (2002). O brasileiro é um povo esplendidamente musical. Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Recuperado de Borelli, S. H. S., & Freire, J. F. (2008). Culturas juvenis no século XXI. São Paulo: EDUC. Bourdieu, P. (2008). A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp. Campbell, C. (2001). A ética romântica e o espírito do consumo moderno. Rio de Janeiro: Rocco. Czeresnia, D. (2008). Epidemiologia, ciências humanas e sociais e a integração das ciências. Revista de Saúde Pública, 42(6), 1112-1117. 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